Nem é preciso viajar para o exterior para detectar impactos semelhantes. Uma pesquisa recente, baseada em informações da vizinhança do Aeroporto de Congonhas, na capital paulista, onde 60% das pessoas convivem com ruídos acima de 50 dB, flagrou uma relação direta entre o som dos aviões e o aumento da mortalidade cardiovascular.
Fazendo a ponte aérea para o Rio de Janeiro, palco do Rock in Rio, todas as noites o tecladista da banda A-Ha, Magne Furuholmen, de 59 anos, se lembra do show que a banda fez na segunda edição do festival. Em 26 de janeiro de 1991, o trio norueguês se apresentou no Maracanã para 198 mil espectadores. Desde então, o músico convive com um indesejado zumbido, que atrapalha inclusive o sono. Para alguns, o ruído lembra um inseto; para outros, o apito de um trem.
O zumbido, outra repercussão da poluição sonora (voluntária ou não), não só abala a qualidade de vida como pode ser sinal de perda auditiva. “É um quadro difícil de tratar. Pode melhorar com remédios em alguns casos. E ruídos alternativos como ventilador e ar-condicionado ajudam a minimizar o incômodo”, diz a neurologista Dalva Poyares, da Associação Brasileira do Sono (ABS).
Calcula-se que o problema atormente 28 milhões de cidadãos no país. O escritor Bernardo Carvalho, de 61 anos, é um deles.
“Era, ou melhor, é como se as válvulas de um velho televisor sem imagem estivessem ligadas nos meus ouvidos”, comparou em crônica de 2006
O zumbido passa a azucrinar quando as células da cóclea, órgão que capta os sons, são danificadas por uma pressão muito forte no tímpano. Semelhantes a minúsculos fios de cabelo, essas células foram feitas para vibrar ao menor volume. Mas, quando o som é muito alto, elas perdem a sensibilidade e deixam de funcionar.
“Da próxima vez que você ouvir um apito depois da balada, lembre-se: é o seu ouvido pedindo socorro”, avisa Balsalobre. Sim, o zumbido, quando constante, prenuncia o déficit de audição.
Dependendo do grau de desgaste das células do ouvido, a perda auditiva é dividida em quatro estágios: leve, moderada, severa e profunda. De acordo com a fonoaudióloga Marcella Vidal, gerente da Telex Soluções Auditivas, o quadro é leve quando você ouve o que o outro diz mas, se a voz for baixa ou estiver distante, tem dificuldade para compreender o que está sendo dito.
É moderado quando a fala é entendida só se a voz for alta ou se estiver vendo quem está falando. Severo quando, em vez de falar alto, é preciso ficar no ouvido da pessoa para ela captar o que está dizendo. E profundo quando, independentemente do volume ou da proximidade, a fala não é ouvida.
Entre altos e baixos volumes
Em alguns casos, a perda auditiva após a exposição a barulhos é temporária. Em um ou dois dias, tudo volta ao normal. Em outros, quando o ruído é persistente ou está acima do tolerável, pode ser definitiva e levar à surdez. Nessas circunstâncias, uma das soluções acaba sendo o aparelho auditivo. As próteses, cada vez mais inteligentes, não fazem mágica. Elas amplificam o som captado por microfones. Mas o ideal mesmo é não deixar a coisa chegar lá.
Por isso, fonos e médicos orientam a uma só voz: não espere ter dificuldades para entender o outro ou viver aumentando o volume da TV para procurar apoio profissional. Especialmente se você vive cercado de sons, em razão da profissão ou do local em que mora, vale fazer uma consulta anual.
O otorrino vai avaliar queixas e eventuais sintomas, como sensação de ouvido tampado e coceira na orelha, e, se necessário, pedir uma audiometria, teste que identifica deficiências.
“Na maioria das vezes, a perda auditiva é lenta e gradual. Só que, quando o paciente procura o médico, em geral já perdeu 40% da capacidade de ouvir”, observa o otorrino André Ricardo Mateus, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo.
Quanto ao escritor Bernardo Carvalho, ele conta que, 16 anos depois de escrever aquela crônica, aprendeu a conviver com o zumbido. “Era só uma questão de se acostumar”, resigna-se. “Pelo menos no meu caso, é muito mais uma condição psicológica do que física.”
Difícil mesmo, quase impossível, é se acostumar com o barulho da noite paulistana. Morador do bairro de Higienópolis, ele reclama de bares e restaurantes que desrespeitam a lei do silêncio.
“Bem embaixo do meu apartamento, há um bar com música altíssima, sem proteção acústica.
E, apesar das inúmeras reclamações ao longo dos anos, nenhuma autoridade toma nenhuma providência”, denuncia o escritor.
A cabeça e o corpo se ressentem
Durante a pandemia, sem poder sair de casa para fazer shows, o cantor e compositor Alceu Valença, de 75 anos, se dedicou a tocar violão, gravar lives e compor músicas. Foram mais de 25, entre xotes, frevos e maracatus. Uma delas, Ópera Neurótica, foi feita em homenagem aos vizinhos do andar de cima que, em pleno isolamento social, resolveram fazer reforma no apartamento.
Uma sinfonia de martelos e britadeiras não deixa o poeta dormir ou pensar”, postou no Twitter Valença, que mora no Leblon, no Rio, em setembro de 2020. Na capital fluminense, só nos primeiros três meses de pandemia, o número de reclamações entre vizinhos cresceu 70%. Em São Paulo, chegou a 200%.
Segundo a Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis (Abadi), sete em cada dez queixas estão relacionadas a, adivinhe, barulhos.
Valença até que levou o perrengue numa boa. Mas nem sempre é assim. Em agosto de 2020, um homem de 69 anos, cansado de reclamar, jogou gás tóxico no apartamento do vizinho, que fazia uma obra havia dois meses. O caso aconteceu nos Jardins, na capital paulista, e foi parar na Justiça.
“O barulho é um fator altamente estressante. E, em excesso, pode fazer mal ao coração”, lerta a psicóloga Suzana Avezum, diretora da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo (Socesp). Mas como é que os decibéis nas alturas perturbam até o músculo cardíaco e o cérebro, a ponto de, como alertam estudos e a própria OMS, ser fator de risco para infartos e AVCs?
Com a palavra, Dulce Pereira de Brito: “Nosso ouvido é uma porta aberta para o mundo. Ao ouvir um som estridente, o corpo libera cortisol, que aumenta a frequência cardíaca e eleva a pressão arterial”, descreve a médica do Einstein. Uma investigação da Universidade de Newcastle, na Inglaterra, apurou que, em altas doses, o hormônio do estresse, como é conhecido o cortisol, não só potencializa a propensão a danos ao coração como fragiliza a imunidade e nos deixa mais vulneráveis a gripes e outras infecções respiratórias.
“E o som nem precisa ser tão elevado”, salienta o cardiologista Cláudio Domênico, coordenador do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio. “O barulho moderado por tempo prolongado também pode gerar estresse e resultar em problemas cardiovasculares”, diz o autor de Em Suas Mãos – Escolhas e Renúncias para Viver Melhor e com Mais Saúde (Intrínseca), livro que já listava a poluição sonora como fator de risco cardíaco.
FONTE: Revista Veja Saúde escrito por André Bernardo Atualizado em 24 Maio 2022, 09h59 – Publicado em 20 Maio 2022, 14h15.